Do Grupo da Praça ao Ginásio Israelita Brasileiro Scholen Aleichem
De 1966 a 1970, realizei minhas primeiras experiências profissionais, com as crenças e intuições iniciais.
Em São Paulo era tempo de Bienal, da Pop Art, de Caetano Veloso. Alegria, alegria, viver no meio da cidade grande.
Via a importância do espaço urbano, do cotidiano, da arte contendo as imagens comuns da vida. Era também um tempo de contradições, do regime militar, de contrarrevoluções, de inexperiência, de ousadia, de medo e coragem.
Em 1969 desenvolvi no Israelita Brasileiro Scholen Aleichem <link interno> um programa de Artes Plásticas para todas as séries do ginásio. Antes disso, porém, participei de um grupo pioneiro, o Grupo da Praça.
O GRUPO DA PRAÇA
Em São Paulo, os alunos do Curso para Formação de Professores de Desenho da Fundação Armando Álvares Penteado procuravam aprender novas abordagens sobre o ensino da arte.
Com Carmela Gross, Isa Cristiana Figueiredo, Marcelo Nitsche, desenvolvia desde 1966 experiências no ensino da arte para crianças.
Entre essas experiências estava o Grupo da Praça, que durante anos reuniu crianças aos domingos de manhã para aulas de arte na Praça Dom José Gaspar, no centro da cidade de São Paulo.
Outros profissionais participaram deste grupo ao longo de sua existência, entre elas Chaqke Ekizian Costa.
Nessa época, íamos aos Festivais da Record, nos reuníamos na casa de alguém do grupo para preparar as tintas para o Grupo da Praça. Convidamos artistas, bandas <completar com texto da Ani>.
O Grupo da Praça proporcionou o espaço para a reflexão, a descoberta e a conquista para as demais experiências que vieram depois.
Uma abordagem mais livre e criativa
O aprendizado sobre o ensino se dava através da experimentação e da observação das poucas experiências sistematizadas que existiam em São Paulo.
No currículo da faculdade, a ênfase maior ainda era o Desenho Técnico e Geométrico, presente no programa das escolas de primeiro e segundo graus.
Nessas escolas, a introdução de uma abordagem mais livre e criativa era ainda uma batalha. A bibliografia sobre o ensino da arte era na maioria editada na Argentina.
O desenho espontâneo
Nessa época, a cartilha de Vicktor Lowenfeld (1903-1960) <link – Para ler>, professor de educação em arte da Pennsylvania State University, era a mais importante referência.
Lido e relido inúmeras vezes, Lowenfeld era o porta-voz de um movimento que valorizava o desenho espontâneo, a não-interferência do professor, a observação das etapas naturais de desenvolvimento, a criatividade, o estímulo a não copiar.
A influência de Herbert Read e de Arno Stern <links Para ler>, através da Escolinha de Arte do Brasil <link>, trazia também a preocupação com o desenvolvimento afetivo e emocional das crianças. <verificar com Ani>
Nesta ocasião fiz minha primeira leitura de Arte e percepção visual do psicólogo alemão Rudolf Arnheim (1904-2007) <link – link Para ler>. Alguma coisa diferente parecia que estava sendo colocada.
A arte da criança, aquilo que tinha o nome de desenho livre, era a base da arte adulta; havia estruturas similares de percepção e de busca de soluções entre a criança e o adulto. Mas, no cotidiano do trabalho, nas salas de arte, estas relações pareciam não existir.
Os trabalhos das crianças eram vistos sob o ponto de vista da educação e da psicologia, mas raramente da arte.
As técnicas enfatizavam a personalidade do aluno, poucas vezes o uso adequado ou inventivo dos materiais. A temática dos desenhos era apreciada, discutida, mas não as soluções formais encontradas.
Discutia-se o que deveria ser ensinado aos alunos: arte, artesanato ou artes industriais? As escolinhas de arte, pioneiras em uma forma de ensino mais inovadora, eram o modelo para o qual se olhava.
Centro de Educação e Arte
Nesta época, o inovador para as aulas de arte era trabalhar com as técnicas adequadas ao desenvolvimento criativo, intelectual e emocional das crianças.
Trabalhando no Centro de Educação e Arte, dirigido por Fanny Abramovich <link>, pesquisávamos técnicas para serem desenvolvidas com crianças tímidas ou agressivas, com nível de atenção alto e baixo, problemas motores e outros.
Embora houvesse empenho em acertar, as técnicas eram limitadas e funcionavam em boa parte como receitas.
Procurávamos também formas de avaliar, fichas, relatórios, que conseguissem apreender algum tipo de desenvolvimento. Estávamos todos aprendendo e era necessário inventar.
Desafios
Os desafios de trabalhar o desenho espontâneo da criança dentro da escola eram grandes: oposição da direção, incompreensão por parte do corpo docente, muitos alunos em classe, falta de sala ambiente, dificuldade de material e dificuldade de informação.
As escolas, em geral, consideravam que o desenvolvimento da criatividade era responsabilidade das áreas artísticas. A partir do teatro, das artes plásticas e da música, a criatividade do aluno se desdobraria para as outras áreas do currículo e para a sua vida.
Deveriam ser criados os currículos de arte nas escolas que se propunham a experimentar. As escolas vocacionais e experimentais procuravam soluções. O Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem era uma dessas escolas que abria ao professor de arte um grande espaço para a experimentação e a pesquisa.
GINÁSIO ISRAELITA BRASILEIRO SCHOLEM ALEICHEM
Comecei a trabalhar no Scholem em 1967, ainda estudante, dando aulas para alunos das quatro séries do Ginásio. O Ginásio construiu um espaço planejado só para as aulas de arte.
Os alunos do ginásio Scholem Aleichem eram crianças bem preparadas intelectualmente. A escola valorizava extremamente a informação e o desempenho intelectual das crianças.
As artes tinham lugar importante no currículo e a História da Arte era trabalhada intensamente nos Estudos do Meio. No entanto, o contato dos alunos com a produção de artes plásticas do momento era praticamente inexistente.
Imagens atuais do mundo
Após algum tempo de trabalho constatei que me interessava a arte das Bienais, das galerias, dos salões, que tinham relação com a minha vida e com a de meus alunos.
Tal arte nutria-se das imagens atuais do mundo, do país, da cidade e, no entanto, não tinha nada a ver com o que era esperado que se fizesse nas escolas.
Minha preocupação principal passou a ser como o fato de viver nesta cidade afetava os alunos; como viam o contemporâneo, no que prestavam atenção, o que sentiam, o que pensavam. Queria que, a partir do que lhes era cotidiano, se desenvolvesse o trabalho de arte.
Tinha a convicção de que os alunos tinham coisas para dizer e podiam encontrar formas para dizê-las. Cada um possuía uma forma pessoal de agir, de pensar, de organizar formas e de fazer um trabalho de arte.
Assim, precisava fazer com que os alunos observassem o seu cotidiano e percebessem os processos pessoais desta observação, suas próprias formas de registrar, de inventar. Isto, na minha intuição, tinha a ver com arte.
A proposta para a quarta série do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem
O meu programa de Artes Plásticas para todas as séries do ginásio em 1969 procurava fazer com que as crianças observassem e registrassem seu cotidiano: o percurso até a escola, a casa, o espaço da escola. A maioria dos alunos morava no Bairro do Bom Retiro, em São Paulo, onde a escola estava localizada.
Em classe os registros eram retomados e faziam-se propostas de trabalho coletivas e individuais. O trabalho começava a partir da experimentação em torno das ideias ou dos materiais.
Para a quarta série, a proposta de trabalho para o segundo semestre envolvia um projeto mais longo.
Os alunos já estavam razoavelmente familiarizados com formas de arte contemporâneas.
Sempre que possível visitávamos exposições, discutíamos trabalhos de artistas, falávamos sobre as diferenças entre os vários períodos da História da Arte. Além disso, em classe, a reflexão sobre o trabalho dos alunos era um procedimento sistemático que procurava enfatizar as intenções de cada um e as soluções formais mais eficientes.
Acreditava nas condições dos alunos para realizar um projeto mais a longo prazo. Pensava ser necessário escapar do receituário de técnicas, colocar as técnicas como meios de se chegar a um resultado desejado, em função daquilo que se queria dizer.
Portanto, um projeto mais longo poderia se estruturar em etapas diferenciadas, incluindo a observação, a reflexão e a procura de solução formal através da experimentação.
O caminho de uma exposição
A partir de uma observação da cidade de São Paulo, a proposta era de que os alunos realizassem trabalhos que mostrassem o que pensavam e sentiam em relação à cidade e de que organizassem uma exposição que ocuparia todo o espaço da escola.
Os alunos, sozinhos ou em duplas, deveriam escolher um local, onde permaneceriam pelo período mínimo de duas horas. Deveriam encontrar formas de registrar rapidamente, em um caderno de anotações, tudo o que os impressionasse: imagens, sons, cores, ideias.
Nas aulas subsequentes, cada aluno deveria rever suas anotações e discuti-las com os colegas e com a professora, com o objetivo de procurar entender sua forma pessoal de perceber, de registrar.
Além disso, os alunos deveriam encontrar os pontos principais que os interessavam e que poderiam originar um projeto de trabalho. Em seguida, desenvolviam os assuntos principais, ampliando-os através de desenhos e textos escritos. Todo este material produzido seria, então, revisto e discutido de forma a configurar um projeto.
Uma vez caracterizados o assunto principal e as possibilidades de execução dos projetos, iniciava-se uma etapa de experimentação de materiais e técnicas. Cada aluno deveria procurar os materiais e técnicas mais adequados ao que queria dizer. Neste momento, também eram levantados os espaços possíveis da escola para a colocação dos trabalhos.
Realização dos projetos e montagem da exposição
A avaliação deste trabalho foi feita através de discussão em classe. Além disto, apliquei um questionário aos alunos que procurava avaliar todo o programa do ano, para determinar quais os processos efetivamente desenvolvidos, o aproveitamento dos alunos, a noção de arte adquirida e as falhas sentidas por eles.
O projeto durou cerca de dois meses. Os alunos participaram com grande entusiasmo, desenvolvendo um processo de pesquisa muito intenso. A exposição ocupou todos os espaços da escola. Havia trabalhos que dependiam da participação do espectador, happenings, trabalhos que utilizavam a música, a escrita, a fotografia.
Todos os trabalhos expressavam a mesma ideia: o ponto de vista dos alunos sobre a cidade, sobre o seu universo, sobre o seu contemporâneo.
Reproduzo a seguir o texto de apresentação da exposição do projeto, escrito pela aluna Fanny Grispun, de 14 anos.
Populem-na!
“Fomos passear na cidade: um passeio parado, estudante, visual. Tentamos achar os elementos em que geralmente acontecemos. E depois de achados ficamos esperando que eles acontecessem na gente. Sentamos em murinhos e bancos que quase sentaram em nós. Os cartazes nos leram, os objetos nos compraram. As pessoas nos procuraram, foram à cidade nos procurar e quanto mais a cidade nos envolvia mais pedaço de cidade nós virávamos. E passamos a desolhar São Paulo. Os tijolos ficaram nossos irmãos. E a mãe-cimento nos abria o sentimômetro. Sentíamos cada vez coisas mais novas. Quando chegamos na escola, olhamos para nós, vimos o que sentimos. Brincamos. Demos um tratamento à base de pregos, arames, plásticos, latas, letras, palavras, caixotes, estiletes, papéis e papeletes, cimento, línguas, reclames e manivelas. Levantamos uma cidade diferente em que só nos falta a população. POPULEM-NA.”
PASSOS SEGUINTES
De 1971 a 1973 fiz meu mestrado nos Estados Unidos, na Tulane University (New Orleans), graduando-me como Master of Arts in Teaching.
Do Grupo da Praça ao final do mestrado, percorri um trajeto em que me preocupava cada vez mais com a possível relação entre as transformações permanentes do próprio conceito de arte e a descrição das etapas de desenvolvimento do fazer artístico das crianças.
Já olhava o desenho da criança não como uma falha ou falta, mas de forma positiva, afirmativa. Um processo em que a criança faz opções sucessivamente. Era com esse olhar que ingressei na Escolinha de Arte do Brasil.