De 1976 a 1983, no Rio de Janeiro, trabalhei na Escolinha de Arte do Brasil.
O trabalho era em equipe, com possibilidade de discutir intensamente, de experimentar de forma mais ampla. Ali havia contato frequente com professores da rede pública e privada.
Realizei com a equipe projetos pelos subúrbios cariocas, pelo Estado do Rio: Nova Iguaçu, Magé, Resende, Itaperuna, Parati.
Era tempo dos festivais de Super 8, do Salão Nacional tentando renascer, do Salão Carioca revendo a gravura e o desenho.
Surgiam os trabalhos em xerox, estávamos diante da rapidez e da transitoriedade: filmes, vídeos, o movimento, as novas questões sobre a imagem.
A ESCOLINHA DE ARTE DO BRASIL
A experiência de trabalhar na Escolinha de Arte do Brasil, coordenar professores, planejar e realizar cursos para a formação de professores, projetos na cidade do Rio e no interior do Estado foi fortalecendo minhas convicções e alargando as questões.
O trabalho de ensino de arte realizado na maioria das instituições ainda estava claramente apoiado na pedagogia e na psicologia.
O ensino da arte tinha pouca relação com a arte que me interessava, aquela que estava sendo feita no momento.
A arte contemporânea estava cada vez mais afastada de uma representação naturalista do real, questionando a si própria. Minha preocupação centrava-se então na possível relação entre as transformações permanentes do próprio conceito de arte e a descrição definida e definitiva das etapas de desenvolvimento do fazer artístico da criança, que parecia tender sempre para uma arte realista.
O fazer artístico das crianças
Observava que as crianças até os 6 anos desenhavam de uma determinada maneira, atentas à experiência, experimentando as formas, os materiais, explorando o espaço do papel, procurando novas soluções.
A criança desta idade não se preocupava com a representação do real. Seu comportamento assemelhava-se ao de alguns artistas que investigam, experimentam.
A partir dos 6 ou 7 anos alguma coisa acontece nos desenhos da maioria das crianças. Elas começam a desenhar realisticamente. Os professores ficam satisfeitos: a primeira figura humana que passa a pisar uma linha de terra, a ter vestido, gravata, rodeada de carrinhos e tanques ou flores e corações.
Representar o real me parecia uma ocorrência natural, uma das etapas do desenvolvimento do desenho, preenchendo necessidades individuais e sociais.
No entanto, eu me perguntava por que a representação trazia consigo necessariamente um empobrecimento no desenho, uma perda nos aspectos mais exploratórios e de investigação da linguagem.
A atitude presente nas fases anteriores da criança, a atenção às ocorrências no desenho, a abertura para pensar novas soluções gráficas e plásticas era substituída por uma tentativa de cópia dos modelos adultos mais tradicionais.
Formação de professores
Nos cursos para formação de professores, observei que a maioria deles não era sensível à ocorrência, no fazer artístico da criança, de traços similares no comportamento do artista adulto.
Esta forma de fazer e pensar, encontrada na criança, parecia ausente no adulto não-artista, sendo por isso estranha e de difícil compreensão para os professores. Perguntava-me sobre a importância que teria para a prática pedagógica o professor poder recuperar em si próprio estas atitudes.
Além disso, os professores de nossos cursos de formação, geralmente, não conseguiam perceber a arte como um campo aberto a novas configurações.
Eu observava que as convicções sobre a arte, mesmo quando não explicitadas, transpareciam no discurso do professor e influenciavam grandemente o aluno. Este tinha dificuldade em escapar da visão de mundo e de arte de seu professor, especialmente quando esta era colocada como a única correta.
Esta observação levantava indagações a respeito do poder que o professor exerce. Parecia-me que o aluno só poderia formular seus próprios conceitos em arte e inventar novas formas de proceder se ele arrancasse este poder das mãos do professor.
Interessava-me pensar as maneiras pelas quais se poderia recolocar este poder no aluno, de forma que ele investigasse suas próprias verdades – condição básica para um trabalho original e pessoal. Era, portanto, necessário mostrar ao aluno a multiplicidade de conceitos e de discursos na produção artística.
Desta forma, às questões relativas às atitudes da criança no fazer artístico vieram juntar-se indagações sobre a compreensão que o adulto tem deste processo e sobre as possibilidades de ampliar a visão de arte a partir da qual o professor orienta o seu trabalho.
Aquilo que parecia uma atitude espontânea na criança pré-escolar, e que procurávamos desenvolver nos grupos de crianças e jovens, poderia ser sistematizado e desenvolvido com os adultos? Poderiam estes últimos recuperar atitudes que já haviam tido na infância? Isto auxiliaria no desenvolvimento de suas formas pessoais de expressão? Qual seria o resultado visual decorrente? Este processo ajudaria os professores a repensar a relação entre o trabalho da criança e a arte?
Estas questões geraram o desejo de experimentar com alunos adultos, professores e não professores, a mesma abordagem que adotávamos na Escolinha com as crianças, valorizando as atitudes de brincar, experimentar, estar atento ao trabalho, refletir sobre o que foi feito, alimentar-se do próprio trabalho.
A partir destas indagações, Maria Luiza Saddi, também professora da escola, e eu elaboramos um projeto e propusemos à diretoria da Escolinha de Arte do Brasil a criação de um Atelier de Artes Plásticas para Adultos, aberto ao público, e do qual também participariam professores e estagiários da escola.
Um momento de Ruptura
A partir desse momento, com o intuito de observar melhor, de ir além e desvendar com mais cuidado o universo da criança em relação à prática artística, eu e outros professores nos demitimos da Ecolinha de Arte do Brasil e decidimos formar o que chamamos de Armação Oficinas de Arte, uma cooperativa de artistas e educadores à procura de uma fundamentação teórica e prática que expressasse este tempo.
Confluências que nos levaram à ruptura
Leituras das ideias do psicólogo alemão Rudolf Arnheim (1904-2007), da psicóloga e educadora Rhoda Kellog (1891-1987) e de Robert Witkin tornaram mais firme a minha convicção de que:
- Entender o processo do desenho da criança estava intimamente relacionado a entender o processo de criação na arte adulta;
- O desenho da criança deve ser visto de forma positiva, afirmativa, como um processo em que ela vai fazendo sucessivamente opções;
- Os mecanismos de autoaprendizado vão deixando de ser utilizados pela criança simultaneamente ao aparecimento do ensino sistematizado na sua vida;
- O professor deveria se envolver com o ato expressivo do aluno através da participação ativa no ato criativo da criança.
Informações que nos chegavam do exterior sobre algumas experiências confirmavam a necessidade de rever objetivos e métodos do ensino de arte e fortaleciam a convicção de que era preciso aproximar o ensino das questões específicas da arte.
Muito antes desse momento, ainda em 1976, participei do curso dado por Tom Hudson, educador inglês que esteve no Brasil a convite da Escolinha de Arte do Brasil. Constatei similaridades entre sua maneira de trabalhar e o que vínhamos desenvolvendo na Escolinha.
Tom Hudson procurava desenvolver com as crianças e com os professores trabalhos que articulassem o ensino a um pensamento em arte, valorizando a pesquisa e promovendo atitudes indagadoras e construtivas em relação ao fazer.
As informações vindas dos Estados Unidos também mostravam a preocupação em rever os objetivos do ensino de arte, enfatizando o conteúdo específico das artes.
O PROJETO ZERO, por exemplo, coordenado pelo psiólogo norte americano Howard Gardner, que focalizava principalmente as etapas do desenvolvimento da inteligência, foi uma influência decisiva neste período, pois enfatizava a necessidade que nós já havíamos identificado, de valorizar os aspectos conceituais e cognitivos da arte.
O programa Resident Artists, desenvolvido em muitas escolas americanas nos anos 70, procurava beneficiar o ensino da arte estreitando os elos entre o artista e a escola, pois anteriormente o vínculo de alunos com verdadeiros artistas não era uma praxe.
O desenho das crianças e o universo da arte
Já na época em que coordenadona os cursos da Escolinha de Arte do Brasil para crianças e jovens, vinha trabalhando no sentido de auxiliar a sistematização de alguns procedimentos pedagógicos visando manter e desenvolver atitudes de reflexão sistemática nas crianças e nos jovens em relação ao seu fazer artístico.
Na prática cotidiana, as questões discutidas pela equipe da Escolinha de Arte do Brasil estavam centradas na relação entre o desenho da criança e o universo da arte.
Procurávamos formas de desenvolver as atitudes encontradas no ato de desenhar da criança pré-escolar – cujos desenhos mostram grande espontaneidade e liberdade – sem adotar a posição simplista e nostálgica de preservar a ingenuidade da criança. Experimentávamos acompanhar e promover o desenvolvimento do fazer artístico da criança, mantendo as qualidades estéticas presentes no seu trabalho em etapas anteriores.
Nossos alunos pesquisavam, encontravam novas soluções, faziam projetos, andavam na cidade, questionavam.
Em um projeto sobre museus, criaram museus de águas, desenharam répteis, exploraram texturas, fizeram trabalhos em sequência, escreveram sobre o próprio trabalho, refletiram sobre as suas descobertas, sobre a maneira de desenhar e pintar, se os materiais e técnicas estavam adequados ao que queriam fazer.
Seriam as nossas crianças diferenciadas, bem dotadas? Ou seu contato com a arte estava sendo diferente e a orientação dada pelos professores estava voltada para outras questões?
Pastas de Trabalho
Na Escolinha de Arte do Brasil os trabalhos das crianças eram guardadas em pastas que eram utilizadas apenas para fazer exposições e apresentações, mas nosso grupo de professores já ia muito além, usando-as como ferramenta pedagógica onde os alunos podiam, a partir delas, ir construindo seu próprio repertório.
Na pasta eram coletados todos os trabalhos, rascunhos, anotações. Periodicamente o professor e o aluno olhavam e discutiam a pasta procurando perceber as ocorrências do trabalho. Perguntas como “o que mudou?”, “o que foi descoberto?”, “o que correspondeu às suas intenções?”, “o que não correspondeu?” norteavam os alunos.
Desta forma avaliava-se constantemente o trabalho, em conjunto com o aluno.
Nos cursos de jovens, a revisão das pastas incluía a elaboração de pequenos textos sobre os novos projetos, descrevendo as etapas previstas, que, após o projeto realizado, seriam revistos para avaliar os resultados conseguidos. Nosso objetivo era romper com uma rotina ainda muito utilizada de trabalhar sobre técnicas isoladas.
A ideia de elaborar projetos mais a longo prazo, era fundamental para a abordagem que queríamos desenvolver.
Acreditávamos que o trabalho de cada aluno precisava de tempo para crescer; as várias tentativas, as várias experimentações iam se encadeando e esclarecendo para o aluno quais seus objetivos, qual o seu repertório, quais os seus interesses principais. Além disso, tínhamos a convicção de que o aluno era o condutor de seu próprio processo e que este processo se autoalimentava.
Depois de um tempo de trabalho sistemático era possível observar que o conjunto de resultados produzidos pelas crianças estava se modificando.
Podia-se notar algumas características comuns, como por exemplo a menor frequência de desenhos e pinturas figurativas, muitos desenhos e pinturas que mostravam a preocupação com a exploração de materiais, sequências de desenhos constituindo um só trabalho, uso de materiais não convencionais.
Ficou claro que a maneira de encaminhar as aulas estava modificando o padrão usual dos desenhos das crianças. Eu suspeitava também que a discussão frequente entre os professores da equipe sobra a ideia de que a arte, além de ser veículo para a expressão individual, é uma forma de investigar e refletir sobre o mundo, era em boa parte responsável por esta transformação.
Parecia, portanto, que a forma pela qual o professor encarava o trabalho da criança determinava, ao menos em parte, o percurso e o progresso do seu desenvolvimento. Afigurava-se também que esta visão do fazer artístico infantil estava relacionada a uma concepção mais geral de arte.